(Dis)paridades

19 Jul

Sorria indecentemente. Já não era mais novidade. Era mesmo um desaforo esperado. Desejavam que assim fosse para sempre. A camisola pendurada na maçaneta da porta balançava com o vento frio que insistia em manter os corpos bem próximos. Em silêncio, agradeceram a dádiva que aquele frio se tornara. Era uma questão de sobrevivência, nesse caso, afetiva.

Acordaram e ficaram ali, na cama, já fazia uns cinco minutos ou duas horas. Ela levantou e desprezou a camisola. Pausa nessa cena. O piso gelado a fazia caminhar na ponta dos pés, como se estivesse de salto, e isso deixava o contorno das suas pernas ainda mais firme. Uma mulher de salto e praticamente sem roupas, correndo como uma menina sem compromissos e com medo. Quando abre a porta e a claridade do dia invade o quarto, é preciso lutar contra a luz para não perder a imagem da sua silhueta longilínea, bem desenhada ao longo dos seus 20 e tantos anos, marcada apenas pela calcinha que usava, tão firme como seus passos.

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Ajustou a sintonia do rádio. Queria mesmo era ajustar a sintonia da sua vida. Sentia-se amargurada nas suas poucas e pobres lembranças. Queria sentar-se em frente ao computador, e ao sentir seus dedos passeando pelo teclado, produzir um novo rumo para sua torpe existência. Era mesmo muito angustiada. Nada a satisfazia. No seu aniversário de 30 anos, preferiu ficar em casa a ter que ouvir todas aquelas mesmas frases de sempre.

O carro parado, o sinal vermelho, o rádio cantando qualquer coisa numa escala de sol, a camisola na maçaneta, as pontas dos pés, a panturrilha saltando, a luz do sol doendo os olhos, a dor, o silêncio, a dor maior. Horas se transformariam em dias e dias se transformariam em meses para que ela pudesse entender aqueles poucos minutos. Sente-se sufocada, abre as janelas, e a brisa gelada – dessas que foram criadas só para os amantes – empurra algumas lágrimas dos seus olhos.

O sinal verde avisa que o trânsito deve seguir. Ela não estava nem aí para o trânsito. Ela não estava nem aí. Queria estar lá. A sintonia já estava ajustada, queria era entender a freqüência.

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Tropeçou no canteiro. Desde o último ano escolar que não corria. Seu coração batia mais forte, e mais forte, e mais forte e mais forte. Ela não sabia, mas ficava linda com aquele ar desesperado. Quando parou sentia seu estômago embrulhado, numa clara sensação de que aqueles eram seus últimos minutos. E de alguma forma realmente eram. Nas suas mãos somente uma carteira de cigarros. Acendeu o último deles quando já não poderia mais se esconder, de si mesmo. Encolhida no ladrilho de um banheiro sujo sentia-se mais limpa do que nunca.

Teve pouco tempo para pensar antes que o socorro chegasse. Não chorou feito criança. Preferiu chorar feito adulto. Preferiu chorar culpando-se pelas suas escolhas e catastrofizando o futuro. Quando percebeu novos olhares, se encolheu de supetão e deixou seu corpo sentir os toques firmes daqueles homens vestidos de branco.

Ela se viu, mais uma vez, fitando o teto. Estava ali há 5 minutos ou dois dias, não sabia dizer com precisão, mas desconfiava que já fazia muito tempo.  Ao lado direito, uma mangueira levava alguma coisa até o seu braço. Não sabia dizer o que era. Os braços contidos na cama com um nó forte só a deixavam fitar o teto.

Sua pior sensação naqueles dias foi a que sentiu quando, ao tentar levantar, pôde ver todos os seus pertences embrulhados no simples plástico. Uma calcinha branca manchada pelo chão de um banheiro mais limpo que o seu viver. Na maçaneta daquele quarto não havia uma camisola e o vento frio que insistia em entrar pelo vão da porta, já não convidava mais para um abraço, mas sim para o desespero.

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Ela abriu um desses livros de auto-ajuda para tentar esquecer. Visitou algumas mulheres fáceis. Experimentou o bem-estar etílico. Não é preciso dizer que de nada adiantaria. Seu vício já era outro.

Engana-se quem pensa que se tratou de uma paixão. Seu vício era entender aquela mulher. Porque levantou com aquela andar nipônico, anunciando um cheiro de café matinal, para em seguida lhe roubar uma carteira de cigarros e correr seminua pelo bairro?

Vício incurável, já que ninguém nunca soube dessa história. O telefone que ela tinha passado foi atendido somente uma vez, por um homem de voz cansada e pouca receptividade. A ligação tinha sido breve o suficiente para que faltassem todas as perguntas. No fundo só pôde ouvir a voz dessas secretárias de 40 e tantos anos dizendo: “Sr. Marcelo, o doutor atenderá sua esposa.”

2 Respostas to “(Dis)paridades”

  1. LuDantas Julho 21, 2010 às 2:25 pm #

    cara.. nao consegui comentar naquele dia, mas to aqui, deixando meu parecer..
    Vc como sempre escrevendo mt bem! Seus detalhes me encantam.. e esse texto em particular.. lindo demais.
    nao soh por se tratar de um caso entre 2 mulheres, mas sim, pela trama. a ousadia, o acaso.. foda demais.. parabens

  2. Di Julho 29, 2010 às 12:27 pm #

    Você tem noção do quanto os seus textos são lindos?
    Admiro muito que consegue escrever assim, com tanta alma!
    Passarei sempre por aqui,,ansiando em encontrar uma nova emoção!

    Bjos

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